segunda-feira, 27 de julho de 2015

Feijão e o Sonho

São cinco horas e quinze minutos. Está muito frio. Na escuridão, aproximo-me do ponto do ônibus fretado, que nos leva diariamente à fábrica de uma multinacional no interior. Trabalho duramente no escritório, excesso de vendas. Graças ao presidente, o Brasil estava em crescimento. Nos olhares, sinto a admiração dos colegas, dizem que sou elegante e eficiente, apesar dos meus sessenta e dois anos.
Na viagem, não consigo conciliar o sono, viro para a janela, um breu. Num flash “vejo” mamãe incansável em sua máquina de costura. Não me recordo se ela descansava: de madrugada, passava roupas. Suspiro e viro para o outro lado, sorrindo penso em papai. Era um bon-vivant, desaparecia por meses, deixava mamãe desesperada, com sete filhos. Alcoolizado era só alegria. Feliz no jogo, comemorava:
- Filha, escolha uma linda fantasia para este carnaval.
- Mulher, trouxe belas porcelanas e cristais. Vamos jantar lagosta?
- Mas homem, é melhor comprar dois quilos de feijão, estamos passando fome, falta alimento em casa...
Estamos quase chegando, será um belo dia de sol. Ah, os fins de semana, aguardo ansiosa pelos risos infantis e a família completa, embora chamem a minha atenção:
- Mãe, a bebida está acabando contigo! Você não se alimenta.
Reconheço, às vezes se torna meu combustível.
- Filho, é para esquecer as indelicadezas, me dá forças... O sabor da bebida no copo é como um beijo subtraído.

Levanto da poltrona: iiihhh! Essas lágrimas vão borrar meus olhos maquiados.


Ethel Naomi
Paulista de Tupã, é cronista, contista e poeta, participante fiel e ativa de saraus literários. Cursou o CLIPE-Projeto da Casa das Rosas, bem como de outros da Casa. Participações nos livros Conte sua História de São Paulo, do radialista Milton Jung, na antologia água terra fogo ar. crônicas elementais, e do Livro-Livre. Acredita na cultura como alimento básico na formação do ser humano, na tentativa de compreender sua existência e a do outro.

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